Reza a lenda que o prezadíssimo senhor H. residia em um muquifo situado numa larga avenida da cidade, de frente para a poluição sonora e de lado para a vista do próximo prédio.
Nunca o arrumava, pois sabia que cedo ou tarde acabaria mergulhado na sua própria bagunça novamente. Os bolos de poeira se acumulavam pelos cantos. A gordura das paredes já havia virado parte da pintura. De vez em quando ele tinha acessos de alergia, micoses, encontros com insetos variados, mas nada que os antibióticos e anti-histamínicos não resolvessem.
O senhor H. tinha um diploma bastante pomposo - ninguém (nem mesmo o próprio H.) sabia muito bem de quê -, pendurado na parede, ao lado de um outro certificado qualquer, e dava aulas. Sim, ele professava seus grandes conhecimentos aprendidos e fixados há cerca de duas décadas com orgulho. Aquele diploma já o havia salvado diversas vezes, era um grande companheiro seu frente às adversidades da vida e do mercado de trabalho.
O homem se dizia uma vítima do ritmo frenético do cotidiano em uma cidade grande, uma vítima do capitalismo enlouquecido, uma vítima daquela sociedade desigual, uma vítima de sua memória envelhecida, falha e corrompida, uma vítima de sua ex-mulher. Enfim, era ele, uma vítima. Incapaz de se adaptar aos valores modernos, ele permanecia mergulhado no seu saudoso passado, a época do 'paz e amor', das discotecas, do amor livre e dos embalos de sábado à noite. O que havia acontecido àqueles anos dourados?
O senhor H. não conseguia concluir nada do que iniciava. Não lhe interessava isso, ele não conseguiria de qualquer modo. Os cursos que havia iniciado estavam parados na metade; desistira pois queria mudar de horizontes. As pessoas a quem ele professava os seus ensinamentos eram muito apressadas; queriam concluir tudo algum dia, onde já se viu? Por isso acabava desistindo de seus empregos, mudando constantemente. Era um espírito livre, oras! Merecia mais do que um trabalho contínuo e entediante, uma vida difícil e repleta de obstáculos financeiros. Merecia mais, não era como os outros.
Ele já trabalhara em vários lugares, mas, como todo o gênio, não conseguira fazer aceitar seus métodos e seus horários (e já recusara tantos empregos por essas limitações de visão dos empregadores!). Vinha, tão paciente, passar seu conhecimento, sua experiência de vida àqueles jovens aprendizes; quanto mais, no entanto, ele professava, mais vorazmente os alunos lhe vinham com questionamentos - como gafanhotos, ele pensava, como gafanhotos. Para compensar os dias em que os bombardeios de perguntas eram maiores, ele se ausentava nas semanas seguintes. Eles deveriam compreender que aquele não era o seu ritmo! Aos poucos, além de todo o resto, o senhor H. estava se tornando vítima também de seus estudantes.
Toda essa gula, todo esse desespero jovem de saber e enumerar conhecimentos lhe causavam aflição, pois passava horas depois relembrando tudo o que não havia conseguido responder. Sentia-se inútil, impotente, perseguido e condenado, procurava alento em vícios diversos, alento que nenhum ser humano lhe conseguiria dar, pois era incompreendido por seus semelhantes. Via o mundo de ponta-cabeça, deprimia-se, cantava, chorava, colocava o som no último volume, perturbando a vizinhança, ria sozinho.
Acordava envergonhado, sentia-se o rei nu.
Na caixa de correio, a intimação da Justiça para pagar a pensão; na porta, um comunicado do condomínio pedindo que respeitasse o horário de silêncio; no computador, centenas de e-mails não-lidos de amigos, de alunos, de colegas. Na parede, o seu diploma, ao lado do seu certificado de perdedor.

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Minha autoria.:D
Se quiserem divulgar (olha a pretensão da criança!), ok, mas não creditem a outros autores. E se possível linkem.
Méh!;)
Jaa!