segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Jogos para donzelas, Shinsengumi e uma resenha

Essa semana, depois de me aventurar a arrumar minhas coleções de mangás, relembrei todo o meu amor por Rurouni Kenshin (ou Samurai X, mas eu sou hipster e uso o nome original). Relê-lo agora que atualizei meus conhecimentos pífios em História japonesa me dá uma outra visão dos fatos.
Sempre tive adoração por aquela seção do mangá em que o Nobuhiro Watsuki fazia um comentário sobre a criação dos personagens, e voltando nelas agora, notei a quantidade de personagens que ele baseou em membros da Shinsengumi – porque não basta colocar os personagens per se.

Senta que lá vem História!
Shinsengumi (新選組 ou 新撰組) , algo como “tropas recém selecionadas”, era um grupo de guerreiros sem mestre que atuava do lado do xogunato, “mantendo a paz” em Quioto. Durante pleno bakumatsu, também conhecido como fim do xogunato (período antes de 1868) – uma época conturbadíssima na História japonesa, que marca o fim de um Japão feudal e o início da modernização e da abertura de portos do país. Eles eram reconhecidos pelo haori (uma espécie de "casaco") azul-claro com montanhas brancas nas mangas, que era considerado um tanto... hmmm, chamativo - cinza e preto sempre foram tendência, olha só.

(Ai, quando eu ‘tava no Ensino Médio fiz um resumo geralzão sobre História japonesa. Leiam lá e não me decepcionem. Um, dois, três e quatro.)

Claro, aquele “mantendo a paz” entre aspas não é por acaso. De um lado, você tinha o Senhor Generalíssimo-sama, o xogum, que mandava e desmandava em todos os outros senhores feudais. E era do lado desse cara que a Shinsengumi estava. 
Do outro lado, você tinha: população revoltada com impostos + senhores feudais oprimidos pelo sistema de xogunato + sentimento de “o xogum não deixa o nosso Imperador mandar em tudo como deve ser”. Não podia dar muito certo. Então, spoiler histórico: a Shinsengumi estava do lado perdedor.

E eles eram mais ou menos assim, só que sem posar para fotos.
Sendo assim, é curioso a quantidade de mitos e histórias que foram criados em torno dessa milícia – que, diga-se de passagem, não era lá muito popular entre os cidadãos de Quioto de sua época. Mesmo o Nobuhiro Watsuki vivia, nas seções de “conversa com o leitor” em Rurouni Kenshin, pedindo desculpas por mudar isso ou aquilo das personagens históricas, ou implorando pra que os leitores não fizessem flamewars acerca das preferências políticas, pra vocês verem, ainda da época do bakumatsu. (Se bem que as piores guerras de impropérios surgem dos assuntos mais absurdos...)

Aliás, sempre achei muito interessante como o mundo editorial japonês transforma até História e personagens históricos em personagens fictícios (bizarros) sem muito escândalo. Seria como – eu pensando em equivalências toscas – se alguém escrevesse um livro em que o personagem principal fosse D. Pedro I, mas como um vampiro bon-vivant que pode saltar entre as eras e, a propósito, em algum ponto ele consegue um Gundam para derrotar as forças portuguesas do mal.

Esse cavalo na verdade é feito de Gundamnium. Por isso que as crianças estão fugindo.
Então... sobre a Shinsengumi foram feitos INÚMEROS jogos, mangás, novelas, filmes, livros,  etc. Em algumas mídias, eles são os personagens principais; em outras, não. Mas eles se fazem presentes mesmo na influência sobre outros personagens - o caso do autor de Rurouni Kenshin sendo o mais conhecido por mim.:D
Já foram dados diversos enfoques também: no talento da milícia em batalhas, nas relações entre os guerreiros (o que me lembra "Tabu", filme que enfoca a questão da homossexualidade), nas relações entre os guerreiros e o mundo de fora da Shinsengumi etc.

Bom, mas como eu cheguei nisso mesmo? Ah, sim. Depois de Rurouni Kenshin, fui pesquisar um pouco sobre a Shinsengumi. Foi assim que achei um otome game chamado Hakuôki: Shinsengumi Kitan nos relacionados .

Para os não iniciados, otome game é o tal do “jogo para donzelas”. É um tipo de jogo em que você começa a aventura entre um grupo de rapazes (com personalidades bem distintas e bem tipificadas), em uma dada situação – que pode envolver cotidiano, vida escolar, vampiros, passado, futuro ou tudo isso ao mesmo tempo (;D). 
Depois de escolher o seu predileto (o príncipe, o esportista, o nerd, o fofinho, o anti-herói, etc.), ao longo do jogo você vai selecionando opções de respostas em menus para ir melhorando seu relacionamento como ele. Até que no fim do jogo você fica com o seu predileto, yay! Ou algo assim. É basicamente um jogo de massagem no ego, em que os personagens masculinos são bonitões, interessantes, e a tratam como uma princesa desde o início (ou não, se você gosta de rapazes “fazidos”). Por exemplo:

"Pelo amor desse jogo, escolha uma opção com contato físico, Ohime-sama."
Opções: 1) Vamos jogar xadrez. 2) Vamos observar as cerejeiras em flor. 3) Vamos fazer algo quente!
 E dependendo das suas opções, da situação e do personagem escolhido, você pode acabar em uma cena como esta:
Jackpot.
Ou como esta:
"Suas habilidades no xadrez me impressionam, Ohime-sama!"
Os chamados “simuladores de namoro” são jogos bem populares entre otakus japoneses, inclusive entre os homens. Nem sempre esses jogos incluem sexo, mas quando incluem são chamados de eroge (abreviação de “erotic game”).
Eles podem ter uma história “original” (que normalmente não é nem um pouco original), ou ser baseados em mangás/animes. 
Por exemplo, o único jogo do gênero que eu já joguei até o fim foi um Love Hina para o console Gameboy Advance. Nesse caso, o jogo permite que você subverta as regras do mangá, e, em vez da chata da Narusegawa, o Keitarô termine ficando com a Mitsune, a Motoko ou qualquer personagem mais interessante que a Naru.:P

Naturalmente, todos os otome game têm um personagem masculino principal, mas você é livre para escolher entre o mundo de homens que aparece na sua jornada. O harém é seu. :D
Mas, em resumo, até a Shinsengumi já virou tema principal de jogo de donzelas. (O chonmage, aquele penteadinho desgraçadamente feio dos guerreiros, é que não teve muita popularidade entre os character designers... Nem entre as otome. Pergunto-me por quê.)

Foi o que comecei a jogar anteontem, o tal do Hakuôki: Shinsengumi Kitan. E em japonês, o que muito me frustra porque não dá pra avançar praticamente nada em um jogo desse tipo sem ter vocabulário – e, no caso, vocabulário “de época”.
Daí, impaciente como eu sou, resolvi ver o anime que criaram baseado nesse jogo.

Hakuôki, uma resenha.
Tudo isso posto, resolvi fazer uma resenha.

Um resumo sem spoilers: Chizuru Yukimura vai para Quioto em busca de seu pai, um médico que sumiu em meio à confusão do fim do xogunato quando resolveu ir até a capital. Anoitece, e Chizuru (que aparentemente não sabe que depois de certo horário as coisas ficam meio tensas) acaba sendo perseguida por alguns samurai sem mestre arruaceiros que se interessam pela espada curta que ela carrega. Uma fugidinha daqui, outra dali, enquanto a mocinha acha um esconderijo precário, os seus perseguidores são atacados por guerreiros da Shinsengumi que estão aparentemente fora de si (= olhos vermelhos, cabelos brancos e risadinhas estridentes – “coelhinho da páscoa mode on”) atrás de sangue e de entranhas espalhadas pelo chão. Os guerreiros malucos, por sua vez, são eliminados por outros membros da mesma Shinsengumi, esses sim normais e, claro, lindos. Eles dão de cara com a menina aterrorizada pela carnificina e, como ela viu algo que não devia ter sido visto, eles decidem levá-la como prisioneira – até porque a coitada da Chizuru desmaia como toda boa mocinha indefesa.
Ela acorda no quartel-general da Shinsengumi, conhece todos os membros, conta que está à procura do pai e que não pode morrer antes de achá-lo, porque se não isso não é um otome game! Tcharam. Eles a deixam viver porque aparentemente também estão procurando o pai dela, um médico que desenvolveu algum tipo de remédio que cura e potencializa a força de quem o toma, mas tem efeitos colaterais terríveis. E o resto é spoiler. Se você ainda quer ver e acha que pode ter algo imprevisível na história, SAIA JÁ DESSE TEXTO!
 
Se não... Pode te aprochegar por aí, vivente, que ainda tem muito mate pra... matear. (/gauchismofail)

Várias coisas me fizeram ver esse anime: os homens bonitos; a questão da Shinsengumi e dos fatos históricos; a parte de fantasia; o harém inverso (8D); a parte do sangue; a parte do romance; a tensão gender bender inicial (sim, porque se eu fiz uma resenha sobre, significa que tem gender bender em algum lugar). As ferramentas estavam ali, mas é claro que a montagem nunca é boa o suficiente... 

A protagonista, Chizuru, é um pequeno pé no saco. Começando pelo primeiro spoiler, a mocinha tem sangue de oni (demônio, ogro, entidade fantástica japonesa), então ela tem aquela capacidade Wolverínica de se regenerar com uma rapidez impressionante. Ela também carrega aquela espada curta que, até onde nos disseram, é “herança do clã dos demônios do leste” e, portanto, tem um poder considerável. Mas ela é uma mocinha tradicional: fraca, inútil, que só grita e desmaia.
Apesar de estar ligada a toda essa questão de, hmm, saúde (filha de um médico, consegue se regerar...), ela é incapaz de oferecer apoio médico satisfatório para os membros da Shinsengumi (o que é uma burrice, porque a quantidade de fanservice possível seria insanamente maior se eles arrumassem isso...8D). Porque não, eles já tem um médico que cuida de tudo.
Além disso, a Chizuru tem uma espada foderosa, mas – sem brincadeira nenhuma – toda a santa vez que ela vai sacar a dita-cuja, aparece algum dos lindos homens da milícia e luta por ela. E apesar do fato de começar a viver entre a milícia e até PATRULHAR as ruas com eles, em momento algum a Chizuru faz o favor de treinar qualquer coisa que seja com aquela espada. Não. Ela varre o chão o episódio inteiro. D:
Mas não é só isso! Quando algum dos homens da Shinsengumi entra em batalha, ela corre atrás para quê? Para ficar gritando, distraindo os caras e atrapalhando a luta de forma geral. Em resumo, muita gente acaba morrendo para defendê-la. (Claro, é tudo desculpa do jogo/anime, porque historicamente falando eles morreriam da mesma forma.)

Nem o Saitou aguenta mais essa ladainha.
O grande spoiler é que o remédio que o pai da protagonista criou para o pessoal da Shinsengumi transforma os seus usuários permanentemente em Rasetsu, seres que são basicamente vampiros. Então, pouco a pouco, a Shinsengumi inteira vai virando uma tropa de vampiros.

Na sequência, acabamos conhecendo os vilões de verdade na história, que também são demônios. E eles, claro, estão atrás da Chizuru a fim de... hihihi... Ok, esse spoiler nem eu sou capaz de dar. Na verdade, o vilão principal, o Kazama, é o personagem que fala as coisas mais sãs de todos os episódios em relação à Chizuru.

Tipo isso.
A Naru Narusegawa dessa história, o bonitão principal, é o vice-comandante Toshizou Hijikata, baseado em uma personagem real, capitão da Shinsengumi - originalmente tido como um homem rígido e sério, que fazia papel de "mãe" porque o comandante Isami Kondou não tinha pulso firme com os subordinados. É ele quem propõe que eles deixem a moça viver ali. Ele é o típico personagem “príncipe atormentado”, que parece que não liga para a mocinha, mas se declara nos momentos cruciais. Na verdade, nessa primeira temporada (o anime tem 2 temporadas e mais uns episódios especiais de encheção) praticamente nada aconteceu. Não para os meus parâmetros. Não parece que ele finge que não se importa. Ele parece realmente não se importar. Mas eu também tenho problemas com protagonistas – os secundários e os vilões sempre parecem mais interessantes.

"Vou aprisioná-la e tratá-la com indiferença. E você vai me amar de qualquer jeito porque eu sou o protagonista."
O que me lembra do Hajime Saitou. Parece que os japoneses têm uma imagem bem consolidada da personagem histórica, e isso acaba refletindo na ficção. Vocês se lembram do Saitou em Rurouni Kenshin? Ele era cruel, frio, o típico cara que parece que está contra você, mas que acaba salvando o time em momentos-chave (Ikki? Magus?).  Desde a época de RK acho ele um personagem muito bem desenvolvido e muito interessante por si só. Parece que a figura histórica Hajime Saitou era um homem de poucas palavras, misterioso, sem muita paciência pra mimimi – e feio (D:). E ele foi um dos membros que sobreviveu. Mas o mais curioso é que até os diferentes designs do personagem são relacionados de certa forma.

Céus, até o tom de azul do cabelo já está consolidado!
Outro membro da Shinsengumi que sempre me despertou uma certa curiosidade foi o tal do Souji Okita. Na verdade, de novo, devo isso ao Nobuhiro Watsuki, que baseou o Soujirou Seta, um dos meus personagens favoritos, vilão da fase do Shishio, nessa personagem histórica. Souji Okita era um prodígio como guerreiro; antes dos 18 anos ele já havia mestrado e desenvolvido técnicas avançadas de espada. As representações midiáticas tendem a mostrar o Souji como um garoto (ele realmente era um dos mais jovens entre os membros da milícia) talentoso, calmo, gentil, “puro”, quase “feminino”. Em Hakuouki, ele é aquele personagem meio malandro, que ri de tudo, o que foge um pouco das representações da personagem histórica. Souji Okita morreu jovem, aos 25 anos, mas não foi “de batalha”; ele contraiu tuberculose.

Not pictured: tuberculosis.
Enfim, acho que o que atrai tanta atenção sobre a Shinsengumi é o fato de ela ter sido composta por personalidades, por guerreiros inegavelmente talentosos e interessantes. E com personalidades distintas o suficiente para fazerem parte de um otome game como tipos.:D

Vi todos os 12 episódios em uma única madrugada porque a expectativa que a série criou em mim foi enorme – mas acabou sendo perdida no meio do caminho. Há uma tentativa de equilibrar as temáticas, mas eu sinto que isso torna tudo mais morno: a rigor, essa não é uma série sobre História, mas dá pra sentir a preocupação meio exagerada em situar os conflitos e as batalhas do bakumatsu, por exemplo, enquanto a parte de ficção e de fantasia fica relegada a um plano secundário.

Parece que faltam boas lutas, faltam boas cenas de romance, faltam boas cenas de humor e falta desenvolvimento na questão dos demônios.  A série é, como eu já disse, morna – e eu me pergunto porque criei tanta expectativa em cima de um otome game, no qual as situações são indefinidas por natureza, já que é a jogadora quem escolhe o final...
E por mais que eu ache interessante todos os conhecimentos sobre o bakumatsu, é muito difícil dissociar o que é liberdade artística e o que é História, motivo pelo qual acho que seria interessante se a questão histórica fosse chutada pra escanteio e a questão fictícia tomasse conta.

Senhoras e senhores: a verdade.
 Não digo que Hakuôki não valha a pena. Tem que haver uma explicação para eu estar me torturando com a segunda temporada, esperando o momento em que a Chizuru vai sacar aquela espada maldita, entrar em modo berserk e retalhar todos os inimigos, ou o momento em que o Hijikata vai tomar alguma atitude romântica mais... mmm, ativa em relação a ela. O anime tem o seu valor e até, vejam só, uma precisão histórica. Mas não é primordial. Vejam se vocês tiverem tempo. Ou se estiverem em busca de fanservice para meninas.

(Spoiler: Na segunda temporada, a moral é que os personagens vestem roupas ocidentais. E o Hijikata corta o cabelo e se torna igual ao Sebastian de Kuroshitsuji. E não fui só eu que percebi.)


Mas meu interesse em Shinsengumi perdura, e com todas as pesquisas feitas, fiquei com vontade de ver Peacemaker Kurogane, Kaze Hikaru e o dorama de época Shinsengumi! (estrelado por ninguém menos que o Katori “Shingo Mama”!).


Este cara.

sábado, 22 de outubro de 2011

A Biografia Semiautorizada

O mais deprimente sobre o seu aniversário é o fato de que ele é só um dia qualquer. Se você não faz nada deliberadamente, nada de realmente diferente acontece; ele passa, você não sente. Não tem um aviso no Gameboy de algum deus que diga que o Pokémon dele está evoluindo. O que até seria bem interessante, pensando nisso. Você não muda de forma, não desenvolve habilidades novas.

Maru has evolved from Squeezy (Marumugyun) to Squary (Marugotsu)
Em uma comparação tecnológica, essa coisa toda de crescer, envelhecer, amadurecer acontece mais como uma daquelas atualizações do Windows: quando você menos espera, quando você menos quer – mais especificamente quando você quer desligar o computador e aparece aquela notificação maldita de 21 atualizações sendo instaladas.
Especialmente pela função de envelhecer, decidi fazer desta postagem em particular uma espécie de retrospectiva de fatos que, de certa forma, moldaram minha vida e minhas idéias como elas são hoje. Se esse post parecer muito mimizento, é porque o escrevi na semana mais deprimente do mês, um pouco antes do meu aniversário. E também, né... é sobre meus mimimis pessoais; existe uma probabilidade de 98,9% de que você não queira saber das reclamações alheias, vivendo em um mundo em que 98,9% das pessoas que não tem problemas reais só sabem reclamar.
As said by the Annoying Facebook Girl.
Quando comecei a escrever na Internet (blog, flog, Orkut etc.) eu gostava principalmente de escrever o conteúdo dos perfis. Na minha fase final da adolescência, em vez de usar adjetivos, que não são nem um pouco esclarecedores, para me descrever passei a listar fatos sobre mim. Daí a mania dos “fatos”. Embora os fatos listados fossem banais - como o fato de eu odiar resolução 1024x768 e preferir a resolução de 800x600 lá nos meus 13 anos.

Então, primeiro fato marcante: a morte do meu pai quando eu tinha 11 anos. Câncer. Não estou evocando isso pra sensibilizá-los, meus caros leitores – embora saiba que esse é um recurso que funciona. Mas qualquer pessoa que passou pela morte de um ente querido extremamente próximo – e em uma idade em que, bom, você já está passando por coisas o suficiente para considerar sua vida um drama mexicano – sabe que todo o processo de lidar com a morte provoca um amadurecimento fora do comum nas pessoas envolvidas. O tipo de amadurecimento que você não enxerga em pessoas saudáveis com famílias completas e sãs, exceto em casos raríssimos (tão raros quanto o próprio status de “família completa e sã”). A morte do meu pai foi aquela marcação definitiva entre a infância nostálgica de Casimiro de Abreu e a adolescência ultra-romântica de Álvares de Azevedo, colocando em termos de clichês. 

Exceto que eu, aparentemente, acabo de ultrapassar os 20 anos. Chupa, tuberculose!
O negócio é assim: um dia você acorda e alguém que você via todos os dias e amava com todas as forças não está mais lá. Todos estão tristes e confusos. Você está triste e confusa – tão confusa que provavelmente só vai de fato entender a situação dias/meses/anos depois, quando finalmente vai conseguir chorar. Mas todos parecem ainda mais tristes e confusos, especialmente as pessoas que tinham em comum a mesma proximidade e o mesmo amor por esse alguém. Então você quer ajudá-los, quer ser uma espécie de pilar para eles – e provavelmente também é o que eles pensam quando olham para você -, motivo pelo qual você não quer ser a única criança com motivos egoístas do grupo, a criança que todos têm que se desdobrar para atender. 
Então você cresce, porque entende que mesmo a sua mãe, mesmo o seu irmão mais velho – mesmo os “adultos”, tão fortes e confiáveis – estão lutando contra a confusão e a tristeza e a saudade. Eles também não sabem o que fazer com esses sentimentos, tanto como qualquer outro ser humano. Não é humanamente possível manter toda a inocência de antes quando você vê a sua mãe, o seu principal apoio, tão fragilizada quanto você.
Mas não dá pra ficar brava com a morte depois que você conhece o Puro Osso.
O segundo fato marcante foi a minha admissão no colégio militar, que acontece mediante aprovação em um concurso (para civis). Na verdade, todo o processo de tentar, estudar, falhar, conviver com um ensino público (estadual) ruim, conviver com um ensino privado igualmente ruim, estudar novamente, tentar novamente e finalmente ser admitida, foi uma batalha mais longa e mais marcante do que certamente estou fazendo parecer.
É bem provável que eu não tivesse tentado mais vezes não fosse a influência em especial do meu pai, que sempre fez uma propaganda ultrapositiva do ensino nas escolas militares. E você pode odiar o quanto quiser essa instituição, mas vai ter que admitir que, sim, o ensino é comparativamente muito melhor. Especialmente quando a sua preocupação é sair de uma escola em que a maioria dos seus colegas considera professores meros serviçais, falta de educação a nova moda, e futuro (pessoal e profissional) uma coisa a não ser levada a sério quando se tem sexo, drogas, hormônios.

Sim, as minhas tentativas de ingressar em um colégio bom foram escolhas minhas (influenciadas, mas minhas). Escolhas que serviram para me tirar de uma depressão profunda que você só sente quando olha para os lados e enxerga apenas uma ou duas pessoas (valiosas amigas) que compartilham as suas preocupações. No colégio militar, eu finalmente pude olhar e enxergar mais pessoas, pessoas muito melhores do que eu própria (em todos os sentidos possíveis), mas, especificamente, pessoas com objetivos semelhantes (e melhores), amigos – amigos que eu suspeito às vezes nem ser digna. E ensino satisfatório.\o/

Deus, adolescência é uma fase negra - que fica ainda pior quando você lida com gente estúpida...
 Terceiro “fato”? Não sei se posso dizer assim. Minha escolha, em momentos diferentes, pelos três fatores da equação que rege minha vida acadêmica agora: Letras – Bacharelado – Japonês. Eu queria ser escritora, sempre gostei de palavras, especialmente as escritas; então a escolha do primeiro termo parece lógica. Desde a primeira série. Do ensino fundamental. O que parece uma escolha obstinada é obviamente fruto da minha ignorância infantil: escritores não cursam Letras. O presente aponta para a minha cara e ri ensandecido; escritores precisam de conhecimento, mas não de um curso específico, não de professores que não sabem ensinar, de colegas que não sabem aprender, etc. (Lembrem-se que há exceções, crianças.)

Reality hits you hard, bro'.
 Bacharelado foi uma escolha menos óbvia, talvez três anos antes do vestibular em si.
Primeiro ponto: “não quero que a palavra ‘Licenciatura’ limite meu campo de atuação a salas de aula”, por A e B motivos. A: é preciso talento para dar aulas, e esse “talento” envolve carisma, persuasão, domínio e calma frente a multidões de pessoas de idades variadas (e nenhuma das quais faz parte da minha lista de qualidades pessoais). B: sejamos realistas, as perspectivas de um professor no Brasil são terríveis, e não estou nem falando dos salários, mas da própria qualidade da educação dos alunos.
Segundo ponto: traduzir, ou trabalhar com textos de qualquer forma, me parecia mais atrativo do que ter que lidar com pessoas diretamente – e essa crença, obviamente, não passa de ilusão, porque qualquer que seja o seu trabalho, em níveis maiores ou menores, você vai ter que lidar com pessoas diretamente em algum ponto, por mais aterrorizante que isso seja (por mais que você tenha palpitações e acessos de pânico).
Terceiro ponto: a Licenciatura não tinha a opção de língua que eu priorizava, o japonês. O que já dá uma dica sobre qual das escolhas eu havia definido antes.

Parece estúpido, mas até hoje eu tento formular uma boa resposta para a pergunta: “por que você escolheu japonês?”; sim, eu ainda tento. Isso vai render uma postagem completamente nova, porque preciso de espaço, tempo e muita organização. Talvez a maior de todas as ironias: a pergunta mais simples e inocente de todas é a que gera a mais complexa das respostas no meu mundo interno. Eu sei qual o conteúdo da resposta, mas ainda preciso organizá-lo para que os outros entendam que um gosto pessoal é, às vezes, resultado de múltiplos fatores; às vezes, é só um gosto pessoal arbitrário. E quanto mais esse gosto influencia a sua vida, mais ele se encaixa na primeira opção.

Gosto de chocolate – mas suspeito que esse seja um daqueles gostos arbitrários...
Também posso citar outros fatos pessoais marcantes em outros níveis: minha imaturidade sentimental de forma geral; minha grande desilusão 2006-2009; meu enfrentamento pontual de preconceitos pessoais e de preconceitos alheios; os estrangeiros e a lição eterna de “como eu sou péssima com qualquer nacionalidade”; minha aventura em SP com pessoas relevantes; minhas desventuras acadêmicas, com professores e colegas. A lista sempre continua.
E esse é um fato per se: a lista sempre continua. Na verdade, mesmo se eu escrevesse uma postagem por dia, para cada coisa que me marca sempre teria algo novo, mesmo que fosse uma frustração ou uma paranóia injustificada (aliás, sou atleta qualificada em esportes de especulação e observação da realidade).

Paranoid Parrot sempre.
O que veio desde o início desse processo de “maioridadezação” foi o medo. Medo de perder a relevância para todos, de não sobreviver às mudanças, de não sobreviver às pessoas, de não sobreviver ao mundo. Medo de não conseguir me independer (trabalhar, morar sozinha, pagar as contas e os impostos...), ou de ficar completamente sozinha, deixada aos meus próprios pensamentos e minhas próprias depressões. Medo de nunca receber nenhum tipo de reconhecimento, nenhum tipo de apoio ou de elogio. De me abandonar e de ficar de mimimi o tempo inteiro, lamentando por coisas que eu perdi porque tive medo de fazer – e esse tipo de medo é a maior e mais lamentável de todas as auto-sabotagens possíveis! Ainda me assombra essa coisa de ser adulta, de responder pelas próprias incompetências. Nesse ponto, já sei que não existe volta. Sei que vou tentar e falhar e tentar e conseguir.
 
Viver eu ainda não sei. Vou lá pesquisar mais sobre o assunto e depois conto para vocês.:) 

sábado, 15 de outubro de 2011

De Inertia

Éramos mais ou menos quinze na fila do ônibus, seis horas e pouquinho, mais um monte de transeuntes passando perto da parada. Não saiu no jornal – provavelmente porque não valia a manchete, “era coisa pequena”, e eu sei que você também diria exatamente assim, “coisa pequena”, porque a verdade é que nós nos tornamos uns insensíveis a tudo isso (se é que algum dia nós já fomos sensíveis).

A primeira da fila era uma mulher, negra, aparência normal, um pouco cansada. Uma camiseta, um jeans surrado (não surrado de marca, surrado de uso mesmo), uns tênis bem simples, uma bolsa no ombro. Acho que ela foi o alvo mais pela posição e pela facilidade do que por qualquer outra coisa. Por ser mulher, magra e estar lá, cansada de um dia estafante de trabalho.

Eles chegaram em três. Já percebeu que esse bostas sempre chegam em bando? Vivem em bando, caçam em bando, provavelmente até se comem entre si só porque é mais cômodo. Com aqueles tênis cor de neon, de marca, calça caída, sempre falando no último volume e gordos, ocupando espaço em todos os sentidos. Nosso sistema é muito bom para engordar vagabundo, e isso vale pra qualquer classe social, dos que comem dez vezes o seu salário aos que ganham “Bolsa Explore O Seu Filho Com O Apoio Do Governo”. Até porque a única maneira que eles têm de chamar a sua atenção é ocupando espaços físicos e sonoros e incomodando o máximo possível; não são inteligentes, bonitos, agradáveis, só resta serem estupidamente incômodos. E eles foram chegando perto dela como se fossem conhecidos.

E no início, parecia isso. Parecia que eles se conheciam, foram se encostando nela como velhos conhecidos, como amigos. Daí ela olhou para nós todos e eu soube. Eu soube que eles não eram conhecidos porra nenhuma e me lembrei que já tinham usado a mesma tática com uma amiga que tinha sido assaltada mês passado... Com essa moça, era o mesmo. Ela me olhava, assustada, apavorada, suplicante. 

Eu tenho vergonha, tenho vontade de me matar só de me lembrar daquele olhar. Ela olhou para todos nós, todos os 15 ou 16, mais os transeuntes, o mundo!... e todo mundo se encolhendo, fazendo cara de paisagem, baixando o rosto, ignorando, passando, dando espaço pra que aqueles três merdinhas de, o quê?, dezesseis, dezessete anos?, fizessem o que eles estavam fazendo ali.
A moça ficou em choque enquanto eles pegavam a bolsa dela, abriam, olhavam, na maior calma porque sabiam que ninguém ia fazer nada mesmo. Um deles chegava a se virar para nós, sorrindo malicioso, como quem diz “valeu pela cooperação”. Ela começou a chorar, e algum deles fez uma piadinha. Ela perguntou, com a voz trêmula, talvez juntando um fiapo de coragem dos frangalhos em que situações como essa transformam a nossa sanidade: “Posso só pegar as fotos dos meus pequenos na carteira?”, e foi só isso mesmo que ela disse.

Uma pergunta inocente dessa e foi o que bastou para um dos assaltantes dar um soco direto no rosto dela - eu cheguei a ouvir o barulho de um dente caindo no chão. Tudo isso pelo quê? Por uma carteira, por um celular, por algum dinheiro magro, que provavelmente sequer cobriria um plano dentário pra que ela consertasse os dentes quebrados? A verdade é que isso não é pelo dinheiro pra comprar os Nikes, os Adidas, etc., pra bancar o churrasquinho de quarta-feira que acompanha o jogo, não é pelo crack, pela cerveja, pelos cigarros, não é sequer pra sustentar os filhos que eles provavelmente já tem – e que criam no mesmo abandono no qual foram criados. A partir daquele momento, ficou bem claro que o assalto não era por nada disso, era pela violência, sempre foi pela violência. Porque a violência é o único modo de esses filhos-da-puta sentirem que têm algum poder sobre algo, mesmo que seja sobre uma mulher cansada em uma parada de ônibus, que seja sobre uma criança indefesa, que seja sobre um cachorro sarnento na rua. A violência é a única capacidade democrática em toda a raça humana, e infelizmente até esses chinelões sabem disso.

Mas você sabe que não é isso que me perturba. O que me perturba é que naqueles minutos nenhum de nós foi capaz de mover um dedo para ajudar a moça sendo assaltada. Eram três! Nós éramos quinze, até mais gente! Questão numérica! E o que é pior: eu não estou me excluindo dessa maioria burra e covarde. Eu estava lá e desviei o olhar, fiquei quieta, fingi que não era comigo! (E seria inocente acreditar que nada daquilo “era comigo”...) Justo eu!

Talvez eu até conseguisse perdoar os outros por saber que a maioria é composta de cordeiros. Séculos de cultura, religião, filosofia, ficção, etc. que nos dizem que existem “bons” e “maus”, que estes são distinguíveis sem muita dificuldade, e que os “bons” são passivos, inertes, oferecem a cara a tapa, perdoam, esquecem, são cândidos, pobres, submissos, silenciosos e aceitam todos... Os “bons” somos nós, daquela fila da parada do ônibus, perdoando os três coitadinhos porque eles nasceram na vila, provavelmente não tiveram uma família estruturada, não tiveram uma boa educação, e agora cobram da sociedade a sua “dívida” – o que para mim sempre foi uma desculpa de merda, criada por uma classe média-alta com aquela inerente culpa judaico-cristã-ocidental por ter algum dinheiro; porque, seja qual for o seu status social ou a sua etnia, ser filho-da-puta não é desculpa para nada. E se você enxerga com esses seus olhos algum tipo de justiça social no que aqueles três fizeram, então eu realmente espero que algum assaltante faça o favor de espancá-lo até você perder a sua visão, já que ela obviamente é um sentido inútil em você.

Eu sei que, no fim, não conseguiria perdoar a multidão de covardes também. Mas eu nunca acreditei nessa coisa de justiça social, e de que nós “merecemos” ser assaltados, porque é o nosso pagamento e porque Deus é maior que isso tudo e porque o Reino dos Céus é daqueles que sofrem, e que são pobres, e que são dependentes, e que choram em vez de tentarem algo. Não, isso não sou eu. Por isso mesmo sei que, naquele momento em que a moça era assaltada, eu não estava pensando em justiça social, em justificativas e etc. Não. Eu estava agindo pelo instinto vergonhoso de defender o meu próprio umbigo e esperar que “os outros” dessem o primeiro passo. Eu estava na mesma expectativa que todos ali: a expectativa de que um suposto “alguém” chamaria a polícia, que então passaria a responsabilidade para a “Justiça”, que então entregaria os criminosos para os carcereiros, que por fim deixariam que os próprios presos se encarregassem de exercer a tal da “Justiça”. Funciona da mesma maneira que alguns pais esperam que as babás ou - mais modernamente - as professoras se encarreguem da educação de seus filhos; é uma delegação infinita de responsabilidades que culmina na não-resolução de problema algum.

Eu não tenho desculpa, não tenho desculpa mesmo. Meu instinto me disse que me meter naquilo poderia resultar negativamente, e eu me coloquei acima daquela pobre mulher, mesmo também havendo a possibilidade de que, se eu desse o primeiro passo, mais duas ou três pessoas também se animassem a correr com os assaltantes dali. Eu também sabia disso inconscientemente, mas fiquei ali, inerte, olhando como quem olha um capítulo de novela se desenrolar. 

Não, eu não me perdôo por isso. Mas também sei que estou propensa a fazer o mesmo em uma próxima situação semelhante, tendo plena consciência disso tudo. Então por que estou contando isso? Porque não quero que o olhar aterrorizado daquela mulher se perca no tempo. Não quero que aqueles dentes quebrados sejam “coisa pequena”, indigna de nota. Não quero que você esqueça – e também não quero me esquecer – de que nós também podemos ser os primeiros da fila um dia, e que nosso olhar aterrorizado vai ser só a entrada para mais um desses banquetes de demonstrações de poder.


 Esse texto foi escrito para a cadeira de Produção Textual, em que a proposta era reescrever o conto "Pai contra mãe", de Machado de Assis. Eu, pessoalmente, acho que reescrever Machado não só é impossível como é praticamente um insulto - e chorei sangue por isso.
A minha interpretação desse conto é a de que o autor, sim, tratou o tema social, a estrutura escravagista estúpida (cinco "vivas!" para aliterações/assonâncias, por favor) da época; mas o que eu enxergo como foco principal é a questão individual, da violência, do descaso com o outro. 
E foi isso que eu resolvi trabalhar, com alguma inspiração débil em The Boondock Saints. Mas mais pela parte da moral do que pela parte da fodasticidade.:(
Também não gosto tanto de trabalhar com crítica social em ficção, mas às vezes é inevitável. Tive que rezar alguns pai-nossos para o São Rubem Fonseca nesse quesito.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Segredos, Confissões e o Lado Negro da Força


Esta postagem na verdade tem por inspiração a afirmação/pergunta retórica que a moça do Dermatilomania normalmente faz quando menciona segredos e diários. Citando a própria: “não consigo entender por que as pessoas têm segredos”. Ela é coerente a ponto de nos entregar o seu próprio diário e dizer: “leiam”. Sério.
Eu, claro, tenho que ser do contra, e provavelmente vou ser xingada por isso, mas sou obrigada a discordar. Acho que segredos são justificáveis, e até necessários algumas vezes. 

Certamente os nossos segredos são responsáveis por uma boa parcela de sofrimento na nossa vida. Ninguém guarda para si um segredo sem sentir o mínimo de frustração, seja porque ele nos pertence, é particular da nossa natureza ou das nossas ações – portanto nossa “CULPA” -, seja porque é de outra pessoa e nós sofremos por ela não poder trazê-lo à luz e resolvê-lo sem se sentir vexada.
Quanto aos segredos alheios, não há o que fazer a não ser guardá-los. Ou não, caso você seja um filho-da-puta fofoqueiro nato.

Ou se interesse por se juntar ao Rancho do Riso da Foca Fofoca.

Mas de que tipo de segredo se fala? No meu dicionário Aurélio, “segredo” tem 5 acepções e todas elas são tão genéricas que não vale nem a pena discorrer sobre isso. 
Vamos adotar o conceito de que segredo é algo pessoal (restringindo um pouco mais as opções) do qual não se fala abertamente por razões diversas.

Para ser mais específica, vou reduzir ainda mais o escopo: esse “algo pessoal” pode ser uma opinião honesta (sobre algo ou alguém), uma linha de pensamento, um traço da natureza ou da personalidade do indivíduo, uma condição física/patológica (deformidades, doenças, síndromes, distúrbios,...), uma ação feita ou situação passada (condutas questionáveis, traumas, lembranças ruins,...), por exemplo.

Por "razões diversas" podemos entender, com freqüência, “vergonha”, “culpa”, “medo” e “preservação”. Claro, isso de uma forma generalizada, pois as razões sempre remetem a uma gama bem mais ampla e complexa de motivos. 

Preservação da sanidade, diga-se de passagem.

Quando o segredo diz respeito a uma condição física ou patológica ele dificilmente prevalece; mas é um bom exemplo de “segredo prejudicial” do qual a Ana fala. Em determinado ponto a própria pessoa procura ajuda e acaba por se “denunciar”. Nada mais justo. 
Uma adolescente grávida que não conta sua condição para seus pais tem medo das reações, mas algum dia seu segredo inevitavelmente vai se mostrar ao mundo. 
Uma pessoa com uma doença terminal pode não informar seus entes queridos para preservá-los da dor; mas em algum momento essa pessoa deverá ser internada, e então não haverá segredo. 
Doenças relacionadas ao sexo se prestam perfeitamente a esse tipo de discussão: quanta gente por aí que não conta nem ao médico sobre uma DST porque tem vergonha de admitir que a tem? (Aliás, sei não... acho que tem gente por aí que tem vergonha até de admitir que tem órgãos genitais.) Daí a coisa evolui de tal modo que só amputando. 

"Santa infestação! Você foi atingido pelos demônios do cabelo! Não há tempo a perder! Vou ter que amputar!"

Também existem os segredos relacionados a ações feitas e situações passadas, os quais eu exemplifiquei com “condutas questionáveis”, “traumas” e “lembranças ruins”, e eles também tem esse caráter prejudicial à pessoa que os guarda. 
Sim, “condutas questionáveis” se aplica a políticos corruptos que fazem alguma maracutaia e, claro, mantêm a boca fechada; mas confesso que pensei nesse termo infeliz para descrever, por exemplo, aquelas vezes em que alguém precisou de ajuda e você simplesmente virou a cara, porque não sabia como reagir ou porque não era com você. Talvez não seja bem um segredo, mas a maioria das pessoas não alardeia sobre esses momentos em que a própria moral falha. 
Mais ou menos por aí estão as “lembranças ruins”, outro termo não muito inspirado (¬_¬) que eu usei para os momentos em que você fez algo basicamente vergonhoso, cometeu alguma gafe da qual a mera lembrança lhe causa mal-estar. 
Já os “traumas” são um tipo de lembrança ruim causada principalmente por fatores externos, mas que ainda assim lhe dão vergonha e mal-estar. Provavelmente a solução mais evidente para questões desse tipo seja a de procurar um profissional, psicólogo/psiquiatra, para discuti-las e aliviar o peso morto que elas constituem para a pessoa.

Pensando bem, faz todo o sentido eu gostar de KareKano...

 Mas os tipos de segredo sobre os quais eu realmente gostaria de falar são os que eu considero mais justificáveis (e mesmo necessários) do que nocivos: os segredos relacionados a traços individuais e a opiniões. Se você diz que não tem segredos, eu sugiro que pare e pense de novo, olhando sob essa perspectiva.

Você mantém em segredo sua opinião 100% honesta sobre alguém considerado querido porque não quer feri-lo, não quer perder a amizade e não quer ser demonizado como o jornalista alemão que decidiu só falar “a verdade”. A “verdade” além de algo que é, muitas vezes, arbitrário, não costuma agradar à maioria. Um bom exemplo é a campanha de uma certa marca de cerveja, que infelizmente não mostra também a versão contrária, das mulheres falando o que elas pensam de verdade. >:)

Claro, falo de um exemplo baseado na minha experiência. Não considero meus amigos perfeitos, por mais que goste deles. Você também não acha seus amigos perfeitos, ou não brigaria com eles ou se irritaria de vez em quando.  
Desde meus primórdios de blogueiragem anuncio a quem quiser ouvir que minha característica mais marcante é a autoconsciência/autocrítica, o que significa que, justamente por esse egocentrismo, passo grande parte do tempo ocupada me analisando e, principalmente, me criticando e me culpando e me envergonhando. Se você é capaz de ligar os pontos, entende que o julgamento que eu faço de mim vale para aqueles com os quais convivo. Inclusive o julgamento negativo
Talvez seja uma estratégia de sobrevivência; eu antecipo as críticas porque morro de medo de ser julgada e criticada – não que antecipar as críticas evite que as pessoas ignorem meus defeitos, isso é impossível. :P

Então, sim, sou rígida nas minhas opiniões acerca das pessoas. 
Que valor tem isso para elas? Faz diferença eu dizer que me incomodo por esta ou aquela característica de alguém? Eu acredito que não – quando alguém decide mudar, o faz por algum tipo de motivação interna, por uma iniciativa que vem de dentro; e não pela opinião de um terceiro, que nunca vai entendê-lo ou aceitá-lo completamente. 
Então mantenho em segredo esse tipo de pensamento. São poucos os que sabem lidar com uma crítica. Eu não sou uma dessas pessoas, e acho que é muito mais agradável ignorar alguns defeitos alheios em defesa do outro, pelo bem-estar da relação, até porque algumas críticas só servem mesmo para alimentar alguma insegurança do indivíduo, quando o que você quer de um amigo seu é justamente encorajá-lo a seguir em frente.

Também acho justificável os segredos acerca da própria natureza. Eu me vejo como uma pilha de defeitos imperdoáveis. Posso enumerá-los de forma geral, mas tenho uma vergonha infinita de exemplificá-los e especificá-los diante de qualquer indivíduo – íntimo ou não. Posso dizer, por exemplo, que normalmente invejo certas pessoas, mas dizer quais pessoas e por que as invejo é simplesmente doloroso de mais para que eu consiga expor publicamente esse sentimento nem um pouco bonito, construtivo ou frutífero. 

Masami Tsuda me entende e entende meu eensy weensy monster.

Acredito que todos tenham os seus demônios, o seu lado negro da força, o seu pedacinho de Voldemort, o seu Álvaro de Campos que enrola publicamente os pés nos tapetes da etiqueta, por mais íntegros que pareçam. É justamente esse lado patético/maléfico que acaba soterrado pelo nosso esforço em manter os defeitos no fundo do baú. Isso é necessariamente ruim?
Provavelmente essa é só uma crença minha para tentar apaziguar essa minha vergonha de existir, não ter a capacidade de atingir a perfeição e achar, em um acesso de puberdade fora de época, que posso apontar para os outros e encobrir os meus defeitos com os alheios.

domingo, 15 de maio de 2011

Pokémon em Tradução II

Esta sou eu atrasando postagens no meu próprio blog, mas vamos lá...
Na postagem anterior falei sobre os pokémons com nomes onomatopéicos; nesta, vou falar daqueles com nomes que fazem referência a personalidades. E dos humanos também!

Na primeira leva, temos os pokémons psíquicos Abra (#063), Kadabra (#064) e Alakazam (#065). Em japonês: Casey (ケーシィ Keeshii), Yungerer (ユンゲラー Yungeraa) e Foodin (フーディン Fuudin). Acho que fica claro que esse estranho padrão de nomes não é baseado em onomatopéias. 
O Casey faz referência a Edgar Cayce, um médium/psíquico (acabo de me dar conta de como as traduções de psychic são pouco explicativas no português...:P) americano. 

Edgar Cayce, eu escolho VOCÊ!
Yungerer vem de Uri Geller, místico israelense daquela escola de “místicos” (ou mágicos/ilusionistas, dependendo do seu ponto de vista) que gosta de dobrar colheres com a força do pensamento. 

Kadabra: uma mistura de Uri Geller e homem do Rá!
E o Foodin? Esse é o melhor: o nome dele foi baseado no do ilusionista Harry Houdini, transcrito em japonês como ハリー・フーディーニ (Harii Fuudiini). Eu explico como “HOU” virou “FUU”: em japonês, esta letrinha representa um som que pode ser transcrito como FU ou como HU – mas, na verdade, não é nenhum deles, e sim um intermediário, [ɸɯ] pelo Alfabeto Fonético Internacional (IPA). 

Houdini usou Escape. Foi superefetivo!
 Em inglês, os tradutores optaram pela referência mais óbvia a palavras místicas do que a nomes de mágicos. Eu gostei da tradução, mas particularmente acho que os nomes em japonês tem um aspecto que desperta mais a curiosidade. E essa escolha até se assemelha à das nomenclaturas científicas de espécies, em que você vê cientistas ou celebridades tendo seus nomes em insetos, plantas, etc.: John Cleese foi homenageado em um lêmur (Avahi cleesei), Angelina Jolie, em uma aranha (Aptostichus angelinajolieae) e FUCKING Darth Vader (!!!), em um besouro (Agathidium vaderi). 
Mas sou bem suspeita em ter essa opinião; não entendi as referências de primeira e tive que pesquisar, o que me trouxe algumas epifanias felizes. Fico imaginando se os próprios japoneses fazem idéia desses trocadilhos superinteressantes...:D

O esquema de referências a personalidades não pára por aí! E ele se mantém em inglês com o Hitmonchan (#107) e o Hitmonlee (#106), os pokémons lutadores. Se você não captou a referência aqui: Jackie Chan e Bruce Lee. Acontece que em japonês os pokémons se chamam, respectivamente, Ebiwalar (エビワラー Ebiwaraa) e Sawamular (サワムラー Sawamuraa), a partir de Hiroyuki Ebihara (海老原 博幸), boxeador japonês, e do kickboxer Tadashi Sawamura (沢村)

Acima retratados de modo pitoresco: Hitmonchan e Hitmonlee, em boa forma e sem vigorexia.
Os nomes dos personagens humanos também foram traduzidos. Como eu já falei, tenho alguns problemas com a tradução de nomes próprios, mas... tenho que reconhecer que houve um certo esforço dos tradutores nesse quesito, apesar de não aprovar algumas coisas.

A Equipe Rocket é composta, na versão em inglês, por Jessie e James, nomes tirados do famoso criminoso e pistoleiro norte-americano Jesse James (1847-1882). Em japonês, a referência não é bem a criminosos, mas certamente a figuras bem ilustres... 
Jessie é Musashi, de Musashi Miyamoto (宮本武蔵, 1584-1645), célebre samurai, espadachim famosíssimo por sua técnica particular com duas espadas e por suas filosofias e reflexões acerca da vida, de estratégias de batalha, etc. 
James é Kojirô, de Kojirô Sasaki (佐々木小次郎,  1585?-1612), poderoso espadachim, famoso por... ter morrido em uma batalha contra Musashi. :D

Jesse James, a equipe de um homem só. (Sim, essa foi apenas uma desculpa para colocar uma imagem bonita aqui.)
Pois bem, da equipe humana da primeira temporada de Pokémon, temos Ash Ketchum, que na versão original é o Satoshi. Em quem ele teve seu nome baseado? No próprio criador da série, Satoshi Tajiri, que era fascinado por colecionar insetos quando criança – dizem as más línguas que agora ele coleciona Pokémons. 
O arquiinimigo do Ash, o Gary (ou Putinho, se você não queria usar o nome padrão do jogo), na verdade se chama Shigeru na versão japonesa. Baseado em ninguém mais ninguém menos que... Shigeru Miyamoto, ídolo e sensei do Satoshi Tajiri, mais conhecido por ser o FUCKING CRIADOR DE MARIO, DONKEY KONG, ZELDA, ENTRE OUTROS. PORRA. E segundo o próprio Tajiri, o Ash nunca vai superar o Gary. Porque o Gary é o Shigeru. E porque o Shigeru é o cara

Shigeru Miyamoto fazendo o que ele faz melhor, você sabe: being awesome.
Ok, parando com o momento fangirl histérica, me resta falar da Misty e do Brock. A verdade é que não há muito o que falar da Misty, ou Kasumi; “kasumi” em japonês é névoa, então nesse caso a tradução se aproximou um bocado. Já o Brock, ou Takeshi, tem um nome um tanto comum em japonês, e o fato de todos os nomes de personagens serem escritos com as letrinhas do alfabeto fonético, katakana, não me ajuda muito quanto aos significados. Existe uma infinidade de ideogramas que podem ser lidos, em nomes próprios, como “Takeshi”, e muitos se relacionam a coragem, alta estatura, bravura, etc. Aliás, o Brock era um dos meus protagonistas preferidos!:D

Imagem necessária.xD
Ah, por fim, o Professor Carvalho ou Professor Oak – nas minhas pesquisas, descobri que ele tem um primeiro nome e esse nome é Samuel (o.O). Na versão original, Yukinari Ookido (オーキド・ユキナリ); “yukinari” é abrupto, repentino; “ookido” é de orquídea, provavelmente. Seria esse um erro de tradução? Afinal a sonoridade de “ooku” (carvalho) e “ookida” (orquídea) carrega algo de semelhante... 
Eu pessoalmente acho que não é um erro, mas uma adaptação. O valor semântico é aparentemente maior em carvalho, uma árvore, do que em orquídea, uma flor. Um carvalho dá uma idéia de força, robustez e, por que não dizer, virilidade – e, afinal, não estamos esperando que esse jogo cative um público majoritariamente masculino? Seria bem difícil convencer uma audiência ocidental da virilidade de uma flor – por mais que “orquídea” venha do grego órkhis, que significa testículo.

Acima: uma árvore muito macho. Pega no meu carvalho.
E aí? Professor Carvalho ou Professor Orquídea?

Essa figura contém uma mensagem subliminar que logo será apontada por padres e pastores.
(Como diz um amigo meu, sob certa perspectiva, um buquê de flores é um belo ramalhete de órgãos sexuais decepados. Durmam com essa agora!)

Isso é até onde vão meus conhecimento pokemonísticos.
Ah, nostalgia, nostalgia... e vontade de jogar!:)
Jaa~!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Pokémon em Tradução I

É, no mínimo, interessante - como tradutora/estudante de tradução - notar que quando um produto envolve o público infantil, os tradutores decidem versar o nome de certos personagens. Harry Potter é um exemplo clássico. Eu tenho que admitir que, como leitora, ODEIO essa prática. Claro, tem o mérito de tentar trazer para a nossa língua um trocadilho infame e oferecer uma informação interessante sobre aquele personagem. Mas não deixa de ser uma simplificação da sonoridade – e, às vezes, a sonoridade é mais interessante que o significado. 

Bom, mas sem entrar em uma discussão mais feroz sobre escolhas tradutórias, o fato é que os produtos infantis/infanto-juvenis são cheios dessas adaptações de nomes. Para quem assistiu a animação da Disney Enrolados (Tangled) na versão dublada em português, o personagem originalmente nomeado de Eugene Fitzherbert virou José Bezerra. Eu me pergunto qual foi o critério usado para definir o nome... Será que foi o Gerador da Improbabilidade Infinita do Guia do Mochileiro das Galáxias? Ou será que só eu não consigo enxergar uma correlação semântica/fonética/referencial entre um nome e outro? 
Pois bem.

O Pascal não aprovou essas mudanças de nomes.

 Acho que uma das maiores surpresas da minha vida foi a descoberta de que os nomes dos pokémons em japonês eram diferentes da versão que víamos no Brasil (tanto nos jogos como na televisão). Descobri isso por uma das várias versões de PokéRap que tem por aí, a versão em japonês do Pizzicato Five. 
Ah! Atenção: quando falo em pokémons, refiro-me à primeira e à segunda leva, porque foi até onde eu fui da série e dos jogos.

O rato elétrico que provocou epilepsia em algumas crianças japonesas, Pikachû, teve seu nome mantido. Pelo menos graficamente. Originalmente, a pronúncia é mais ou menos como PikaTCHÛ, não Pika, como ele ficou popular por aqui. Tanto faz. O interessante é notar que o nome deriva de duas onomatopéias: pikapika, onomatopéia de coisas brilhantes/reluzentes; e chû, o som feito pelos ratinhos. 

Vários pokémons seguem essa regra da onomatopéia. Aliás, japoneses adoram onomatopéias, até para coisas que não fazem som, como... o silêncio (!!!). (A “onomatopéia” de silêncio é shiin, antes que me perguntem...)

Outro exemplo é um dos meus preferidos: o Vulpix, e sua evolução, Ninetales. Em japonês, Vulpix é originalmente Rokonro de “seis” (referência ao número de caudas) e kon de “konkon”, o som que as raposas fazem. O Ninetales é Kyukon, sendo o kyu de “nove”.

O mesmo acontece com o célebre Miau ou Meowth ou Nyaasu, o pokemon da Equipe Rocket. No Japão, os gatos fazem nyaa. A tradução, nesse caso, seguiu a mesma lógica em todas as línguas.

Também os pokémons Grimer e Muk, aqueles melequentos, no original são Betobetaa e Betobeton, respectivamente - betabeta é a “onomatopéia” de coisas grudentas e pegajosas.

Mas não só de onomatopéias vivem os nomes desses bichos! Vou continuar esse assunto na próxima postagem, até porque os nomes dos personagens de Pokémon dão muita história...
Até a próxima!o/

Vou continuar na próxima postagem também porque um Snorlax selvagem apareceu pra bloquear minha mente.