quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A Torta de Cerejas




   Era um dia bonito como qualquer outro dia bonito. O sol queimava minha pele descuidada e sem nenhum protetor solar porque, francamente!, usar protetor solar nessa cidade subtropical de merda é um insulto ao meu senso comum desorientado que acha que o uso de protetor solar se limita ao verão e à praia.
   Eu tinha acabado de descer do ônibus, um transversal que parecia que ia se desmontar, de tanto solavanco e barulho e nheco-nheco. O pedaço da torta de cerejas no fundo da sacola, mumificada em papel alumínio, vinha sacolejando conforme eu caminhava. Cuidado nunca foi o meu forte, ainda mais com coisas renegadas. Dobrei uma esquina, atravessei a rua seguinte. Faltava pouco, faltava pouco. As pessoas passavam e eu nadava no sentido oposto. Só mais uma quadra, e mais uma rua, e ploft.
   Em parte por culpa do salto, em parte porque não sei caminhar e pensar ao mesmo tempo, tropecei e caí quase que de cara no chão, salva apenas pelos meus cotovelos. Ainda bem que fui de jeans, e não de vestido!, pensei. Ainda bem. Eu não queria olhar em volta, tinha pessoas por perto, então eu sabia que não ia querer olhar em volta. Isso não aconteceu, nada aconteceu, continuem a nadar, foi só um arranhãozinho nos cotovelos. Foi só um arranhãozinho. A sacola nem se despendeu do meu braço, a torta continuou lá no fundo, talvez um pouco mais amassada, mas foi só um tropeção e ainda bem que eu fui de jeans.
   Eu já estava de joelhos, quase me levantando quando alguém estendeu a mão, e consegui ficar em pé de novo. Agradeci, a gente sempre agradece e reza pra não acontecer de novo, mas não fiquei muito reparando no rosto, acho que era um cara de terno e gravata -- não sei por que, não gosto de encarar pessoas desconhecidas por muito tempo, algo me diz que posso acabar sendo mal interpretada. Agradeci de novo e continuei rumo à minha casa, e ele continuou na direção oposta.
   Acho que dei uns dois passos com a pulga atrás da orelha. Então virei para trás, para ver o cara de terno mais uma vez, e percebi que ele fazia o mesmo. Desvirei rapidamente. Nenhum de nós voltou ao ponto de intersecção, cada um seguiu, mas agora eu tinha certeza quase absoluta.
   Larguei as chaves de casa em cima da mesa, ao lado da sacola com a torta, e sentei no sofá.
   Devo ter ficado uma meia hora ouvindo aquele zunido da chaleira até guardar tudo nas gavetas imaginárias, levantar e ir desligar o fogão. Nada melhor que uma boa água fervente com ervas goela abaixo para ajudar a torta de cerejas esmagada, sangrenta e disforme a descer pela minha garganta seca e contraída.
   Eu não ia chorar. A essa altura, acho ridículo chorar, acho objetivamente estúpido chorar, e esse é o tipo de coisa que só se faz no banho, longe da civilização e sem dar soluços altos, porque se ecoar pelo poço de luz, alguém pode ficar sabendo. Nesse tipo de situação, a única coisa aceitável a se fazer é tapar os ouvidos, ignorar o ruído ensurdecedor, fechar os olhos, ignorar as luzes piscantes, e engolir uma múmia de torta de cereja intragável com um chá exterminador do passado e de cordas vocais.
   Talvez se a cidade fosse maior, se as minhas rotas de fuga fossem mais diversas, se eu limitasse ainda mais meu campo de visão dos joelhos alheios para baixo, talvez assim eu estaria livre de encontrar conhecidos no meio do caminho. Essa não era nem a primeira vez.
   E ele? Será que lembrava? Provavelmente não, nem era tão importante. O cara de terno era só mais um desses que ia chegar em casa depois do insólito encontro, tirar os sapatos e a gravata, abrir a geladeira por uma lata de refri ou cerveja, ligar a TV pelo noticiário -- e depois pelo futebol --, desligar o computador e pensar “é, era aquela mina bizarra mesmo”, ou talvez nem isso; talvez ele fosse só ir dormir sem pensar em nada relacionado a encontros do acaso, destino, relações cármicas do universo ou falha na matriz. Talvez aquela viradinha para trás tivesse sido instintiva, nada de mais.
   Eu tentei desenrolar o alumínio da torta devagar, mas sempre tive essa coisa de tentar combinar a velocidade interna à externa e falhar miseravelmente. O alumínio rasgou. Eu dei uma mordida na ponta da torta. Aquele gosto doce, doce demais pro meu gosto, quase artificial de tão doce, inundou meu paladar. Nunca gostei de cereja, mas a minha tinha se esmerou tanto em fazer essa torta que eu tive pena de dizer que não queria um pedaço, dois pedaços, levar o que sobrou pra casa. Ela se deu ao trabalho de misturar a massa, forrar a fôrma, comprar as cerejas em calda, controlar o forno, e depois ainda de embrulhar o pedaço restante e de colocá-lo no fundo daquela sacola de supermercado... Talvez seja algo que as pessoas façam sem intenção, mas pra mim, é quase como uma chantagem emocional, como se a única saída fosse aceitar uma parte de todo esse trabalho sem fazer cara feia.
   Eu engoli a torta em grandes pedaços, tomei o chá em grandes goles, meio arrepiada e a contragosto. Era uma questão de honra terminar aquilo ali, no momento, e não jogar no lixo e depois pensar “que desperdício!”, nem guardar na geladeira e me enganar “daqui a dez anos eu certamente vou tomar o gosto pela cereja em calda”. E que alívio quando engoli o último naco daquele negócio! Fiz uma bolinha com o alumínio e a arremessei no lixo.
   Será que o cara do terno me reconheceu? Eu espero que não.
   Fui tomar um banho.