quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O gato mais mordaz da cidade

Aproveitando que ontem (22/02) foi o Dia do Gato no Japão, resolvi inaugurar a seção de literatura japonesa hoje.
Eu queria começar por um livro fininho (porque eu sei que vocês têm medo de livros compridos), mas não vai dar. Eu vou é começar pelo meu preferido, por algo que eu recomendo com carinho – e se eu gosto é porque também não é assim tão difícil de ler. Acho.

O livro de hoje se chama Eu sou um gato (吾輩は猫である Wagahai wa neko de aru), de Natsume Sôseki.
"As patas de um gato parecem não existir, pois por onde passam jamais emitem ruídos incômodos."
A história é baseada em uma premissa muito simples: o mundo sob o ponto de vista de um gato que não tem nome e nasceu em um beco escuro e úmido, mas que sabe que é melhor que eu, você, e todos nós juntos.

Depois de vaguear por alguns lugares e ser enxotado por aquilo que se chama de “criatura humana” (palavras do gato), ele chega na casa de um professor que decide deixá-lo ficar. E o gato decide ficar.
Daí em diante temos a análise constante – e ferina – do professor Kushami (“espirro”) e dos outros humanos que moram na casa ou passam por lá.

O professor Kushami é um sujeito de poucas palavras, com uma certa aura de sabedoria professoral, especialmente quando se tranca no gabinete para ler. Mas o gato tem uma visão privilegiada – e muito ócio sem culpa – para entrar sorrateiramente no cômodo e verificar que o professor lê duas ou três páginas dos compêndios de conhecimento para logo em seguida cair no sono e ainda babar em cima dos livros. Seu estilo de vida faz com que o gato oscile entre considerá-lo excêntrico ou medíocre - mas que tenha certeza quanto a caracterizá-lo como um tanto glutão e bastante neurastêmico.

É interessante notar que ao longo da história, ele vai percebendo no professor algumas características felinas, enquanto o próprio gato vai se identificando com os humanos, embora nunca perca o seu orgulho felino, a ponto de ele afirmar que "(...) em minha cauda carrego não apenas deuses, budas, Eros e Tanatos, mas também a técnica especial passada de geração em geração de enganar toda a humanidade". Tudo isso para se vangloriar daquela habilidade que os gatos têm de poderem se infiltrar nos lugares sem serem necessariamente notados.
Habilidade mais ou menos fatal para pombos gordos de cidade grande.
Pela visão crítica do gato, também acabamos conhecendo a família do professor, constituída pela esposa, por três filhas (Tonko, Sunko e Menko) e por uma empregada (Osan). Ele não é nada favorável na descrição delas, uma vez que, segundo o próprio relato, não só nenhuma demonstra um pingo de afeto pelo gato, como também elas o maltratam infinitamente.
Isso considerando que ele devia ser mais ou menos assim logo no início do livro.:(
Um personagem particularmente engraçado é o Meitei, o amigo pedante do professor, aquele que sempre sabe de tudo, sempre tem uma história de iluminação espiritual, além de conhecimentos ilimitados em nomes e citações de artistas, cientistas e personalidades - e muitas mentiras criadas para rir da cara dos crédulos (como o professor). Pelas palavras do gato: "o esteta era o tipo de homem cujo prazer era enganar as pessoas, descarregando sobre elas coisas sem pé nem cabeça". É o personagem mais sem noção do livro e não perde uma oportunidade de debochar dos outros.

Entre os amigos mais próximos do professor também tem o Kangetsu, um estudante de física, ex-aluno do professor Kushami, agora tentando alcançar o nível de doutor com uma tese sobre "a dinâmica do enforcamento". Ele é o pivô de uma das maiores intrigas na qual o professor Kushami se mete.
Intriga do tipo que envolve espionagem, difamação e guerra psicológica.
O Kangetsu vira objeto de desejo (?) de uma mocinha, Tomiko, filha do empresário Kaneda, que mora em uma mansão na mesma rua que o professor. A fim de saber que tipo de sujeito é o Kangetsu (e se ele é adequado para a sua filhinha), a senhora Kaneda faz o que é mais lógico: suborna a rua inteira para obter informações sobre o rapaz. Quando resolve dar o "carteiraço" no professor Kushami, ele não se impressiona, o que a deixa muito irritada. O professor e o Meitei até decidem liberar umas informações sobre o candidato a noivo, mas só na base da humilhação e das ironias que a senhora Kaneda não compreende nem gosta. O que importa para a mãe é que o Kangetsu vire doutor de uma vez, se ele pretende casar com a honorável patricinha Tomiko...

Só que a senhora Kaneda tem uma característica que chama muito a atenção do gato, do professor e do Meitei. Ela é nariguda (o nome da personagem é Hanako; hana = nariz). E embora eles só comentem o assunto longe da presença da madame, as paredes têm ouvidos.
E são de papel.
O que acontece é que a senhora Nariz sai da casa do professor muito ofendida por não ter tido um tratamento condizente com a sua condição social, e resolve travar uma pequena guerra psicológica com ele. Essa guerra inclui mandar vizinhos para espionarem e gritarem impropérios para o professor, entre outros. (Mas o professor Kushami e o Meitei também não deixam muito barato com uma excelente discussão reflexiva sobre narizes...)

Vale muito a pena acompanhar a vida do professor Kushami, e as interações dele com a família, os vizinhos fofoqueiros, os alunos mal-educados, e os amigos bizarros.

A graça do livro, na minha opinião, é justamente esse julgamento irônico feito por alguém que não possui restrição alguma, ou obrigação com a espécie humana. (E, nesse sentido, dá para comparar com a situação em Memórias Póstumas de Brás Cubas, do Machado: um defunto que já não tem mais nenhuma daquelas restrições sociais então pode contar a história com o nível de crítica que lhe apraz.)
"O Gato-zumbi", uma história de desprezo por Sôseki de Assis.
Os capítulos do livro foram publicados um a um na revista literária Hototogisu ("Cuco"), então é possível sentir uma certa independência entre um capítulo e outro. A parte da intriga com a família Kaneda e o Kangetsu é que acaba se estendendo por mais de um capítulo, mas muitas das peripécias do gato e do professor ficam restritas a um capítulo só.

Dificuldades: a quantidade de citações a intelectuais/estetas/artistas/estadistas que você provavelmente não conhece e o contexto em que as citações aparecem. O tradutor fez o que pôde com as notas de rodapé, mas não dá pra disfarçar que as filosofias e os discursos do trio principal são coisas que fazem mais sentido para quem tem uma mínima bagagem acadêmica. Em alguns trechos a voz do gato nem aparece, pois o foco vai para os devaneios retóricos dos três amigos. (O que me lembra os momentos Quincas Borba dentro do "Memórias Póstumas...".)

O livro se divide entre as próprias experiências do gato e da família, as discussões do trio Kushami/Meitei/Kangetsu, a intriga com os Kaneda e os comentários ácidos do gato sobre tudo isso. As minhas partes preferidas são basicamente essas que o gato resolve comentar algum assunto humano, porque ele nunca nos perdoa.
Rezo todos os dias para que eles não consigam polegares opositores...
Dizem que o Sôseki se descreveu no personagem do professor - o que é interessante, porque a visão que nós temos desse alter-ego é externa. O Sôseki também é o gato. Teríamos aí um legítimo livro de autoajuda?:D

Aproveitando a deixa, na próxima postagem eu falo um pouquinho sobre o autor desse livro, Natsume Sôseki.

  

Eu sou um gato (吾輩は猫である Wagahai wa neko de aru) 
Estação Liberdade
Tradução de Jefferson José Teixeira
Do site da editora


(Para vocês que lêem japonês, achei ISTO durante a minha pesquisa, e agradeço enormemente se algum de vocês souber de uma fonte para ver alguma dessas adaptações.:3)

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Bloqueios literários e mimimis de quem quer se eximir da responsabilidade

Eu gosto de escrever resenhas. Afinal, quem não gosta de explicar para os outros sobre assuntos dos quais gosta (ou odeia), né?
Mas eu confesso que evitava fazer resenhas de livros porque, ãhn, não me sentia no direito de discutir literatura. Não me levem a mal: eu gosto de literatura. (Gosto tanto que fui cursar Letras.) No entanto, sempre tive a impressão de ser uma “parede” em discussões de literatura. Ou minha interpretação é óbvia demais, ou eu não entendo nada mesmo, ou a minha interpretação é estranha etc. Geralmente só com uma segunda leitura é que eu consigo depreender alguma coisa que preste do livro - e isso me deixa meio angustiada. Eu sinto que deveria ter uma capacidade mais ampla (e eficiente) de compreensão, uma bagagem literária maior, ou até, sei lá, ser mais articulada para me explicar.

Também muito me aborrece que o pessoal mais fanático da literatura decide que você só é completo depois de ler o cânone deles e de desistir de leitura porcaria*. E eu gosto de leitura porcaria!
(*Literatura porcaria: best-sellers, literatura policial, romances de banca, ficção científica...)
Apesar de que isso foi um pouco além do conceito até pra mim, a rainha da tolerância literária (not).
Fora o fato de eu ter um ritmo de leitura bem lento e de ter muito mais coisa na pilha de espera do que propriamente na pilha de “lidos”. Mas acho que isso é até normal para nós que gostamos de ler.
Talvez eu tenha essa resistência para falar sobre literatura porque falar sobre literatura é se posicionar, mostrar aos outros as suas observações irrelevantes (e ignorâncias) e sair um pouco da zona de conforto. E aprender a não tratar por Otto Maria Carpeux quem te trata como o crítico literário do Diário Gaúcho.
Internas.
O que dizer então de literatura japonesa? Eu só fui ler alguma coisa de literatura japonesa na universidade, porque algum dia a gente tem que criar vergonha na cara, né?
Meu primeiro livro foi A Casa das Belas Adormecidas (眠れる美女 Nemureru bijo), de Yasunari Kawabata – sobre o qual lembro de ter lido uma resenha (me preparo para uma enxurrada de mimimis de ensino superior) na Veja. Mas isso é outra história.
Ao longo da vida acadêmica, fui lendo mais coisas; coisas excelentes, coisas mais ou menos. Só que fora do mundinho da universidade – e mesmo no mundinho da universidade – percebi que poucas pessoas conheciam algo de literatura japonesa. E também não há tão pouca coisa assim publicada aqui no Brasil. (É pouco; mas tem, sim, o que ler!)
Exceto pr'as professoras e colegas que acham que a gente é maluco
por insinuar que existe literatura fora da Europa e da América.

Talvez seja porque a leitura - como um todo - não é um hábito muito difundido aqui no nosso querido país. Talvez por n outros motivos. Mas talvez porque vocês realmente nunca ouviram falar em autores e obras e tudo mais.
Ou talvez porque um vórtice tenha te sugado para uma realidade em que não existe Japão.
Então eu decidi que, já que eu não posso consertar a falta do hábito de leitura - ou qualquer outra coisa sobre a qual eu não tenha controle -, pelo menos vou tentar contribuir para a divulgação do que existe por aí - e que eu conheço.

Estou estudando a criação de um blog (“outro, meodeosdocéu!”) só para isso – um com um título mais SafeForWork, para você não ficar tachado na empresa como “aquele cara que é chegado em sado-masô”.
Por enquanto, fico por aqui. Até porque pornografia atrai visualizações de página, e vai que eu consiga converter alguns tarados em leitores de literatura japonesa? Tanizaki agradece.

O nome dessa nova seção será:
A bem dizer, eu já tenho minha primeira resenha praticamente pronta, e ia colocá-la nessa primeira postagem. MAS! Postagens longas cansam, eu sou prolixa, e tenho que aprender a dividir melhor o conteúdo dos textos. 
E aquele livro... merece mais do que ser uma sub-seção de outro texto. :)