Era um dia bonito como qualquer outro dia bonito. O sol
queimava minha pele descuidada e sem nenhum protetor solar porque,
francamente!, usar protetor solar nessa cidade subtropical de merda é um
insulto ao meu senso comum desorientado que acha que o uso de protetor solar se
limita ao verão e à praia.
Eu tinha acabado de descer do ônibus, um transversal que
parecia que ia se desmontar, de tanto solavanco e barulho e nheco-nheco. O
pedaço da torta de cerejas no fundo da sacola, mumificada em papel alumínio, vinha
sacolejando conforme eu caminhava. Cuidado nunca foi o meu forte, ainda mais
com coisas renegadas. Dobrei uma esquina, atravessei a rua seguinte. Faltava
pouco, faltava pouco. As pessoas passavam e eu nadava no sentido oposto. Só
mais uma quadra, e mais uma rua, e ploft.
Em parte por culpa do salto, em parte porque não sei
caminhar e pensar ao mesmo tempo, tropecei e caí quase que de cara no chão, salva
apenas pelos meus cotovelos. Ainda bem que fui de jeans, e não de vestido!, pensei.
Ainda bem. Eu não queria olhar em volta, tinha pessoas por perto, então eu
sabia que não ia querer olhar em volta. Isso não aconteceu, nada aconteceu,
continuem a nadar, foi só um arranhãozinho nos cotovelos. Foi só um arranhãozinho.
A sacola nem se despendeu do meu braço, a torta continuou lá no fundo, talvez
um pouco mais amassada, mas foi só um tropeção e ainda bem que eu fui de jeans.
Eu já estava de joelhos, quase me levantando quando alguém
estendeu a mão, e consegui ficar em pé de novo. Agradeci, a gente sempre
agradece e reza pra não acontecer de novo, mas não fiquei muito reparando no
rosto, acho que era um cara de terno e gravata -- não sei por que, não gosto de
encarar pessoas desconhecidas por muito tempo, algo me diz que posso acabar
sendo mal interpretada. Agradeci de novo e continuei rumo à minha casa, e ele
continuou na direção oposta.
Acho que dei uns dois passos com a pulga atrás da orelha.
Então virei para trás, para ver o cara de terno mais uma vez, e percebi que ele
fazia o mesmo. Desvirei rapidamente. Nenhum de nós voltou ao ponto de
intersecção, cada um seguiu, mas agora eu tinha certeza quase absoluta.
Larguei as chaves de casa em cima da mesa, ao lado da sacola
com a torta, e sentei no sofá.
Devo ter ficado uma meia hora ouvindo aquele zunido da
chaleira até guardar tudo nas gavetas imaginárias, levantar e ir desligar o
fogão. Nada melhor que uma boa água fervente com ervas goela abaixo para ajudar
a torta de cerejas esmagada, sangrenta e disforme a descer pela minha garganta
seca e contraída.
Eu não ia chorar. A essa altura, acho ridículo chorar, acho
objetivamente estúpido chorar, e esse é o tipo de coisa que só se faz no banho,
longe da civilização e sem dar soluços altos, porque se ecoar pelo poço de luz,
alguém pode ficar sabendo. Nesse tipo de situação, a única coisa aceitável a se
fazer é tapar os ouvidos, ignorar o ruído ensurdecedor, fechar os olhos,
ignorar as luzes piscantes, e engolir uma múmia de torta de cereja intragável
com um chá exterminador do passado e de cordas vocais.
Talvez se a cidade fosse maior, se as minhas rotas de fuga
fossem mais diversas, se eu limitasse ainda mais meu campo de visão dos joelhos
alheios para baixo, talvez assim eu estaria livre de encontrar conhecidos no
meio do caminho. Essa não era nem a primeira vez.
E ele? Será que lembrava? Provavelmente não, nem era tão
importante. O cara de terno era só mais um desses que ia chegar em casa depois
do insólito encontro, tirar os sapatos e a gravata, abrir a geladeira por uma
lata de refri ou cerveja, ligar a TV pelo noticiário -- e depois pelo futebol
--, desligar o computador e pensar “é, era aquela mina bizarra mesmo”, ou
talvez nem isso; talvez ele fosse só ir dormir sem pensar em nada relacionado a
encontros do acaso, destino, relações cármicas do universo ou falha na matriz.
Talvez aquela viradinha para trás tivesse sido instintiva, nada de mais.
Eu tentei desenrolar o alumínio da torta devagar, mas sempre
tive essa coisa de tentar combinar a velocidade interna à externa e falhar miseravelmente.
O alumínio rasgou. Eu dei uma mordida na ponta da torta. Aquele gosto doce,
doce demais pro meu gosto, quase artificial de tão doce, inundou meu paladar.
Nunca gostei de cereja, mas a minha tinha se esmerou tanto em fazer essa torta
que eu tive pena de dizer que não queria um pedaço, dois pedaços, levar o que
sobrou pra casa. Ela se deu ao trabalho de misturar a massa, forrar a fôrma, comprar
as cerejas em calda, controlar o forno, e depois ainda de embrulhar o pedaço
restante e de colocá-lo no fundo daquela sacola de supermercado... Talvez seja
algo que as pessoas façam sem intenção, mas pra mim, é quase como uma chantagem
emocional, como se a única saída fosse aceitar uma parte de todo esse trabalho
sem fazer cara feia.
Eu engoli a torta em grandes pedaços, tomei o chá em grandes
goles, meio arrepiada e a contragosto. Era uma questão de honra terminar aquilo
ali, no momento, e não jogar no lixo e depois pensar “que desperdício!”, nem
guardar na geladeira e me enganar “daqui a dez anos eu certamente vou tomar o
gosto pela cereja em calda”. E que alívio quando engoli o último naco daquele
negócio! Fiz uma bolinha com o alumínio e a arremessei no lixo.
Será que o cara do terno me reconheceu? Eu espero que não.
Fui
tomar um banho.