A casa estava suja. A Senhora ainda estava parada na entrada quando viu as partículas de poeira flutuarem diante de seus olhos amendoados. Piscou algumas vezes para que seus cílios dourados repelissem aquilo. Sabia que ele não seria capaz de mudar um alfinete de lugar depois que ela fosse embora. Como era previsível! A sala estava abarrotada de jornais empilhados; os balcões, cobertos de louça não lavada e latas de refrigerantes. O piso... ah! Ela não queria olhá-lo, mas foi inevitável. A madeira, outrora brilhante, estava opaca; o pó formava quase um tapete. Havia até cinzas de cigarro caídas. Aquele lugar estava parado no tempo.
A mulher jogou sua cabeça para trás, num gesto que lhe era característico, fazendo com que as pontas de seus louros e lisos fios de cabelo – agora um tanto curtos – roçassem em seus ombros nus. Ela sentia cócegas e se acalmava momentaneamente com a sensação. A Senhora largou as sacolas que tinha em mãos no chão da sala e prosseguiu com sua inspeção pela casa. Ele não voltaria tão cedo; era seu horário de trabalho. A gaiola do canário estava vazia de vida, mas o homem não se dera ao trabalho de limpá-la e guardá-la. O mesmo se podia dizer das violetas murchas na janela.
Um dia houvera amor ou algo semelhante, pois ela bem sabia apreciar as qualidades dele. O problema é que jamais aprendera a apreciar os seus defeitos. Não sabia como lidar com o ódio que sentia pelos pequenos escárnios do cotidiano, como na primeira vez em que ele a chamara de Senhora, por brincadeira. Ela tinha apenas três anos a mais! Talvez, para ele, parecesse uma boa piada dizer que havia se comprometido com uma “coroa”. A mulher se olhou no espelho ao lado da escada: seu corpo era esguio, sua estatura média. Ela se esforçara para manter aquelas proporções, mas havia cometido o pior dos pecados: nascera antes dele. Não só isso. Preocupava-se com a carreira e com a casa – e dava conta das tarefas. Talvez se preocupasse demais mesmo; era a maldição da competência. Esperava que ele também tivesse ambições e que também fizesse o possível para conseguir alcançá-las. Contudo, sua maior pretensão era conseguir ir ao bar depois do serviço. Não queria crescer; queria um diploma medíocre, um emprego estável, uma esposa conivente. Ou melhor, não queria uma esposa, mas uma mãe. Alguém que lhe dissesse a hora de dormir, de acordar e de criar juízo. Estava cansada daquela vida de babá. Ela queria só um companheiro.
Quando subiu as escadas e entrou no quarto de casal, o salto do seu sapato parou de fazer o barulho de madeira contra madeira. A Senhora olhou para os pés e viu um bolo de fotos espalhadas pelo chão, retratos de uma vida aparentemente feliz. Como era fácil fingir que estava tudo bem! Alguns anos se passaram e os sorrisos pareciam os mesmos. Claro que parte da culpa era dela; havia deixado passar tantos comentários, tantas pequenas traições, tantas grandes traições... O descaso dele seria inevitável. Já iniciaram o relacionamento morando naquela casa, que ela adquirira após seu primeiro bom negócio; nunca construíram nada juntos, tudo sempre foi fácil demais. Agora era hora de fazer uma faxina.
A Senhora abriu a última gaveta de sua penteadeira com seus longos dedos, de unhas pintadas na cor de grafite, e recolheu alguns documentos. Abriu a bolsa que trazia a tiracolo e guardou-os. Encaminhou-se para o banheiro, abriu o armário com espelho, pegou o batom de sua cor preferida, páprica, e passou-o sobre os finos lábios. Raramente o havia usado, já que não era a tonalidade predileta dele. Combinava bem agora com a sua blusa alaranjada. Ela sorriu. Foi até a cozinha de azulejos brancos – agora amarelados pela falta de cuidados – e abriu a geladeira. Refrigerantes, comida congelada e algo na gaveta das verduras que fez com que suas narinas se estreitassem mais do que o comum. Nada de importante. Nem na lavanderia, nem no quarto onde ela amontoava seus pertences da infância... Não havia nada de importante naquela casa, a não ser a luz do sol da tarde, que entrava pela janela da sala ultrapassando as cortinas das quais ela tanto gostara um dia. Agora elas cheiravam a tabaco e lembravam o dia em que ela o encontrara naquele sofá verde-musgo com uma outra mulher. Já o havia perdoado. Tanto fazia; ele não era mais ninguém. Era apenas uma partícula de poeira flutuante na sua vida.
A mulher abriu os pesados embrulhos que deixara largados no meio da sala. Refez toda a sua trajetória pela casa derramando o produto de odor característico sobre os seus adorados móveis de cerejeira e o chão de tacos. Com certeza o cheiro melhoraria como sempre melhorava. A Senhora normalmente limpava não porque sentia prazer nisso, mas porque a imundície lhe incomodava profundamente; porque a idéia de viver em um ambiente infecto lhe causava asco. Aquele homem bem sabia disso, mas não se importava. Era mais viril zombar e fingir indiferença. Tudo bem, ela limparia a sujeira dele de bom grado, mas seria a última vez.
Quando a Senhora finalmente atingiu a varanda, ela suspirou aliviada. Havia terminado. Juntou a sua bolsa, saiu da casa e, antes de trancar bem a porta, jogou para dentro alguns fósforos acesos. As labaredas só se pronunciaram bem mais tarde.
Pronto; agora a casa estava limpa.
[Baseado no conto "Apelo" de Dalton Trevisan.]
Ficção para a disciplina de Produção Textual.
Hmmm... Creditem?:D
Jaa!o/
A mulher jogou sua cabeça para trás, num gesto que lhe era característico, fazendo com que as pontas de seus louros e lisos fios de cabelo – agora um tanto curtos – roçassem em seus ombros nus. Ela sentia cócegas e se acalmava momentaneamente com a sensação. A Senhora largou as sacolas que tinha em mãos no chão da sala e prosseguiu com sua inspeção pela casa. Ele não voltaria tão cedo; era seu horário de trabalho. A gaiola do canário estava vazia de vida, mas o homem não se dera ao trabalho de limpá-la e guardá-la. O mesmo se podia dizer das violetas murchas na janela.
Um dia houvera amor ou algo semelhante, pois ela bem sabia apreciar as qualidades dele. O problema é que jamais aprendera a apreciar os seus defeitos. Não sabia como lidar com o ódio que sentia pelos pequenos escárnios do cotidiano, como na primeira vez em que ele a chamara de Senhora, por brincadeira. Ela tinha apenas três anos a mais! Talvez, para ele, parecesse uma boa piada dizer que havia se comprometido com uma “coroa”. A mulher se olhou no espelho ao lado da escada: seu corpo era esguio, sua estatura média. Ela se esforçara para manter aquelas proporções, mas havia cometido o pior dos pecados: nascera antes dele. Não só isso. Preocupava-se com a carreira e com a casa – e dava conta das tarefas. Talvez se preocupasse demais mesmo; era a maldição da competência. Esperava que ele também tivesse ambições e que também fizesse o possível para conseguir alcançá-las. Contudo, sua maior pretensão era conseguir ir ao bar depois do serviço. Não queria crescer; queria um diploma medíocre, um emprego estável, uma esposa conivente. Ou melhor, não queria uma esposa, mas uma mãe. Alguém que lhe dissesse a hora de dormir, de acordar e de criar juízo. Estava cansada daquela vida de babá. Ela queria só um companheiro.
Quando subiu as escadas e entrou no quarto de casal, o salto do seu sapato parou de fazer o barulho de madeira contra madeira. A Senhora olhou para os pés e viu um bolo de fotos espalhadas pelo chão, retratos de uma vida aparentemente feliz. Como era fácil fingir que estava tudo bem! Alguns anos se passaram e os sorrisos pareciam os mesmos. Claro que parte da culpa era dela; havia deixado passar tantos comentários, tantas pequenas traições, tantas grandes traições... O descaso dele seria inevitável. Já iniciaram o relacionamento morando naquela casa, que ela adquirira após seu primeiro bom negócio; nunca construíram nada juntos, tudo sempre foi fácil demais. Agora era hora de fazer uma faxina.
A Senhora abriu a última gaveta de sua penteadeira com seus longos dedos, de unhas pintadas na cor de grafite, e recolheu alguns documentos. Abriu a bolsa que trazia a tiracolo e guardou-os. Encaminhou-se para o banheiro, abriu o armário com espelho, pegou o batom de sua cor preferida, páprica, e passou-o sobre os finos lábios. Raramente o havia usado, já que não era a tonalidade predileta dele. Combinava bem agora com a sua blusa alaranjada. Ela sorriu. Foi até a cozinha de azulejos brancos – agora amarelados pela falta de cuidados – e abriu a geladeira. Refrigerantes, comida congelada e algo na gaveta das verduras que fez com que suas narinas se estreitassem mais do que o comum. Nada de importante. Nem na lavanderia, nem no quarto onde ela amontoava seus pertences da infância... Não havia nada de importante naquela casa, a não ser a luz do sol da tarde, que entrava pela janela da sala ultrapassando as cortinas das quais ela tanto gostara um dia. Agora elas cheiravam a tabaco e lembravam o dia em que ela o encontrara naquele sofá verde-musgo com uma outra mulher. Já o havia perdoado. Tanto fazia; ele não era mais ninguém. Era apenas uma partícula de poeira flutuante na sua vida.
A mulher abriu os pesados embrulhos que deixara largados no meio da sala. Refez toda a sua trajetória pela casa derramando o produto de odor característico sobre os seus adorados móveis de cerejeira e o chão de tacos. Com certeza o cheiro melhoraria como sempre melhorava. A Senhora normalmente limpava não porque sentia prazer nisso, mas porque a imundície lhe incomodava profundamente; porque a idéia de viver em um ambiente infecto lhe causava asco. Aquele homem bem sabia disso, mas não se importava. Era mais viril zombar e fingir indiferença. Tudo bem, ela limparia a sujeira dele de bom grado, mas seria a última vez.
Quando a Senhora finalmente atingiu a varanda, ela suspirou aliviada. Havia terminado. Juntou a sua bolsa, saiu da casa e, antes de trancar bem a porta, jogou para dentro alguns fósforos acesos. As labaredas só se pronunciaram bem mais tarde.
Pronto; agora a casa estava limpa.
[Baseado no conto "Apelo" de Dalton Trevisan.]

Hmmm... Creditem?:D
Jaa!o/