Éramos mais ou menos quinze na fila do ônibus, seis horas e pouquinho, mais um monte de transeuntes passando perto da parada. Não saiu no jornal – provavelmente porque não valia a manchete, “era coisa pequena”, e eu sei que você também diria exatamente assim, “coisa pequena”, porque a verdade é que nós nos tornamos uns insensíveis a tudo isso (se é que algum dia nós já fomos sensíveis).
A primeira da fila era uma mulher, negra, aparência normal, um pouco cansada. Uma camiseta, um jeans surrado (não surrado de marca, surrado de uso mesmo), uns tênis bem simples, uma bolsa no ombro. Acho que ela foi o alvo mais pela posição e pela facilidade do que por qualquer outra coisa. Por ser mulher, magra e estar lá, cansada de um dia estafante de trabalho.
Eles chegaram em três. Já percebeu que esse bostas sempre chegam em bando? Vivem em bando, caçam em bando, provavelmente até se comem entre si só porque é mais cômodo. Com aqueles tênis cor de neon, de marca, calça caída, sempre falando no último volume e gordos, ocupando espaço em todos os sentidos. Nosso sistema é muito bom para engordar vagabundo, e isso vale pra qualquer classe social, dos que comem dez vezes o seu salário aos que ganham “Bolsa Explore O Seu Filho Com O Apoio Do Governo”. Até porque a única maneira que eles têm de chamar a sua atenção é ocupando espaços físicos e sonoros e incomodando o máximo possível; não são inteligentes, bonitos, agradáveis, só resta serem estupidamente incômodos. E eles foram chegando perto dela como se fossem conhecidos.
E no início, parecia isso. Parecia que eles se conheciam, foram se encostando nela como velhos conhecidos, como amigos. Daí ela olhou para nós todos e eu soube. Eu soube que eles não eram conhecidos porra nenhuma e me lembrei que já tinham usado a mesma tática com uma amiga que tinha sido assaltada mês passado... Com essa moça, era o mesmo. Ela me olhava, assustada, apavorada, suplicante.
Eu tenho vergonha, tenho vontade de me matar só de me lembrar daquele olhar. Ela olhou para todos nós, todos os 15 ou 16, mais os transeuntes, o mundo!... e todo mundo se encolhendo, fazendo cara de paisagem, baixando o rosto, ignorando, passando, dando espaço pra que aqueles três merdinhas de, o quê?, dezesseis, dezessete anos?, fizessem o que eles estavam fazendo ali.
A moça ficou em choque enquanto eles pegavam a bolsa dela, abriam, olhavam, na maior calma porque sabiam que ninguém ia fazer nada mesmo. Um deles chegava a se virar para nós, sorrindo malicioso, como quem diz “valeu pela cooperação”. Ela começou a chorar, e algum deles fez uma piadinha. Ela perguntou, com a voz trêmula, talvez juntando um fiapo de coragem dos frangalhos em que situações como essa transformam a nossa sanidade: “Posso só pegar as fotos dos meus pequenos na carteira?”, e foi só isso mesmo que ela disse.
Uma pergunta inocente dessa e foi o que bastou para um dos assaltantes dar um soco direto no rosto dela - eu cheguei a ouvir o barulho de um dente caindo no chão. Tudo isso pelo quê? Por uma carteira, por um celular, por algum dinheiro magro, que provavelmente sequer cobriria um plano dentário pra que ela consertasse os dentes quebrados? A verdade é que isso não é pelo dinheiro pra comprar os Nikes, os Adidas, etc., pra bancar o churrasquinho de quarta-feira que acompanha o jogo, não é pelo crack, pela cerveja, pelos cigarros, não é sequer pra sustentar os filhos que eles provavelmente já tem – e que criam no mesmo abandono no qual foram criados. A partir daquele momento, ficou bem claro que o assalto não era por nada disso, era pela violência, sempre foi pela violência. Porque a violência é o único modo de esses filhos-da-puta sentirem que têm algum poder sobre algo, mesmo que seja sobre uma mulher cansada em uma parada de ônibus, que seja sobre uma criança indefesa, que seja sobre um cachorro sarnento na rua. A violência é a única capacidade democrática em toda a raça humana, e infelizmente até esses chinelões sabem disso.
Mas você sabe que não é isso que me perturba. O que me perturba é que naqueles minutos nenhum de nós foi capaz de mover um dedo para ajudar a moça sendo assaltada. Eram três! Nós éramos quinze, até mais gente! Questão numérica! E o que é pior: eu não estou me excluindo dessa maioria burra e covarde. Eu estava lá e desviei o olhar, fiquei quieta, fingi que não era comigo! (E seria inocente acreditar que nada daquilo “era comigo”...) Justo eu!
Talvez eu até conseguisse perdoar os outros por saber que a maioria é composta de cordeiros. Séculos de cultura, religião, filosofia, ficção, etc. que nos dizem que existem “bons” e “maus”, que estes são distinguíveis sem muita dificuldade, e que os “bons” são passivos, inertes, oferecem a cara a tapa, perdoam, esquecem, são cândidos, pobres, submissos, silenciosos e aceitam todos... Os “bons” somos nós, daquela fila da parada do ônibus, perdoando os três coitadinhos porque eles nasceram na vila, provavelmente não tiveram uma família estruturada, não tiveram uma boa educação, e agora cobram da sociedade a sua “dívida” – o que para mim sempre foi uma desculpa de merda, criada por uma classe média-alta com aquela inerente culpa judaico-cristã-ocidental por ter algum dinheiro; porque, seja qual for o seu status social ou a sua etnia, ser filho-da-puta não é desculpa para nada. E se você enxerga com esses seus olhos algum tipo de justiça social no que aqueles três fizeram, então eu realmente espero que algum assaltante faça o favor de espancá-lo até você perder a sua visão, já que ela obviamente é um sentido inútil em você.
Eu sei que, no fim, não conseguiria perdoar a multidão de covardes também. Mas eu nunca acreditei nessa coisa de justiça social, e de que nós “merecemos” ser assaltados, porque é o nosso pagamento e porque Deus é maior que isso tudo e porque o Reino dos Céus é daqueles que sofrem, e que são pobres, e que são dependentes, e que choram em vez de tentarem algo. Não, isso não sou eu. Por isso mesmo sei que, naquele momento em que a moça era assaltada, eu não estava pensando em justiça social, em justificativas e etc. Não. Eu estava agindo pelo instinto vergonhoso de defender o meu próprio umbigo e esperar que “os outros” dessem o primeiro passo. Eu estava na mesma expectativa que todos ali: a expectativa de que um suposto “alguém” chamaria a polícia, que então passaria a responsabilidade para a “Justiça”, que então entregaria os criminosos para os carcereiros, que por fim deixariam que os próprios presos se encarregassem de exercer a tal da “Justiça”. Funciona da mesma maneira que alguns pais esperam que as babás ou - mais modernamente - as professoras se encarreguem da educação de seus filhos; é uma delegação infinita de responsabilidades que culmina na não-resolução de problema algum.
Eu não tenho desculpa, não tenho desculpa mesmo. Meu instinto me disse que me meter naquilo poderia resultar negativamente, e eu me coloquei acima daquela pobre mulher, mesmo também havendo a possibilidade de que, se eu desse o primeiro passo, mais duas ou três pessoas também se animassem a correr com os assaltantes dali. Eu também sabia disso inconscientemente, mas fiquei ali, inerte, olhando como quem olha um capítulo de novela se desenrolar.
Não, eu não me perdôo por isso. Mas também sei que estou propensa a fazer o mesmo em uma próxima situação semelhante, tendo plena consciência disso tudo. Então por que estou contando isso? Porque não quero que o olhar aterrorizado daquela mulher se perca no tempo. Não quero que aqueles dentes quebrados sejam “coisa pequena”, indigna de nota. Não quero que você esqueça – e também não quero me esquecer – de que nós também podemos ser os primeiros da fila um dia, e que nosso olhar aterrorizado vai ser só a entrada para mais um desses banquetes de demonstrações de poder.
Esse texto foi escrito para a cadeira de Produção Textual, em que a proposta era reescrever o conto "Pai contra mãe", de Machado de Assis. Eu, pessoalmente, acho que reescrever Machado não só é impossível como é praticamente um insulto - e chorei sangue por isso.
A minha interpretação desse conto é a de que o autor, sim, tratou o tema social, a estrutura escravagista estúpida (cinco "vivas!" para aliterações/assonâncias, por favor) da época; mas o que eu enxergo como foco principal é a questão individual, da violência, do descaso com o outro.
E foi isso que eu resolvi trabalhar, com alguma inspiração débil em The Boondock Saints. Mas mais pela parte da moral do que pela parte da fodasticidade.:(
Também não gosto tanto de trabalhar com crítica social em ficção, mas às vezes é inevitável. Tive que rezar alguns pai-nossos para o São Rubem Fonseca nesse quesito.
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